sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Novos e velhos ventos

Tenho uma memória consideravelmente falhada, mas lembro com riqueza de detalhes dos prazeres e desprazeres de festas de fim-de-ano. Sempre as associei com clima tropical, frutas da estação, hipocrisia cristã, pessoas próximas e queridas e, principalmente, com o aconchego do lar. É estranho como a noção de lar se amplia quando estamos em outro continente. Lar agora é Brasil. É América Latina. É Oceano Atlântico.
Hoje é dia 31 de dezembro e eu não estou com calor. No meu entorno, pessoas dormem, fumam, desayunan, baixam videos do youtube, fotografam, saem, voltam, riem. Pessoas próximas, mas distantes. Pessoas queridas, mas desconhecidas.
Olho pela sacada e vejo centenas de turistas. A cidade está tomada. Todos em busca do novo. Congelando instantes em aparatos tecnológicos de 50 euros. Consumindo. Presumindo. Reproduzindo. Ya está. Buena onda. Hasta ahora. Adiós.
Começo a entender um pouco melhor os catalanes. Como se não bastasse o fato de invadir a tua cidade, essa gente nem ao menos fala a tua língua! Joder! No somos españoles, somos catalanes, vale?
É... nem só de flores é feita uma Barcelona. É feita também de xenofobia, de um consumismo exacerbado, de uma pobreza crescente - ainda que incoparável com a nossa -, de uma sensação de desplazamiento. De uma saudade que corta, mas que também alimenta. Alimenta uma força interior. Uma força que a gente só descobre que tem quando precisa dela.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Pierdas y piedras

Las piedras que cargo

Son el tejido de un corazón putrefacto

Un corazón que hace falta

Un corazón lleno y tumbado

Coro de pierdas vecinas

Agüeros de seda

Trozos de manzana dulce

Todo que reluce

Todo que tras relucir

Baja y hiere

Y calla

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Lágrimas negras

Belezas são coisas acesas por dentro.
Tristezas são belezas apagadas pelo sofrimento.

Interpretada por Gal Costa

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Vanguardia

"El piensamento transfeminista, a su vez, quiere transcribir las voces de todas las minorias - sexuales, raciales y economicas - que no son invitadas al baile del capitalismo blanco y primermundista, silenciadas a diario por el heteropatriarcado dominante."


Culturals La Vanguardia
01 de deciembre de 2010

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

O novo do bem

Alguma coisa nela estava diferente. Alguma coisa no jeito em que ela me pegou. Um cisco parado no olho. Uma lágrima pra dentro. Um alargamento nas faces superiores. Uma beleza que eu nunca tinha visto. Toques chamuscados. Semblantes enrubescidos. Verdes e mouros. Claros azuis em intensas fuligens. Um inusitado “nós” surgia. E eu gosto quando as coisas surgem.

sábado, 27 de novembro de 2010

ANTIPANICO

Um par de olhos vidrados /Un par de ojos fijados
Uma peça que falta /Una pieza que hace falta
Um gosto de coca /Un gusto de coca
Um lugar de sobras /Un lugar de sobras

O negro que fica /El negro que se queda
É o branco que foge/ Ès el blanco que huye
O risco perdido /El riesgo perdido
É a vontade que salta/ Son las ganas que saltan

Tudo é exposto /Todo está expuesto
Esgoto /Cloaca
Explode /Explote

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Em trânsito

Um pesar invertido segue secreto em ritmo contido.
Um cantar reunido, abriga o azul e o amarelo que não grito.
De onde estou, as bolas são prata e o passo é firme.
De onde venho, o preto é cor e cara e dor.
Para onde eu vou, não sei.
Em trânsito, passei.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Em tempo

Em tempos de entrada
Portas & vidas
Punhos & pousos
Cortes profundos e morosos

Mas o tempo é saída
É porrada
É boca no mundo
É toca no asfalto
Vivência e partida
Couraça varrida
Chão
Despedida

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Um delírio e muitos tempos

No exato momento em que a vê ali, imóvel, estatelada naquele chão frio e sólido, Raul é tragado por um redemoinho de emoções vividas. Sente como se o presente nada mais fosse que um tempo intermediário entre o que foi e o que será. Ou melhor, entre o que foi e o que seria, já que o futuro é o menos existente dos tempos.
Agora Raul estava na porta de sua primeira casa. Segurava uma maça babada na mão direita. Seus olhos eram limpos e novos. Não se apegavam às coisas com a convicção de hoje. Apenas experenciavam. Sem julgamentos ou pressupostos. Sem peso. A mãe vinha em sua direção. Sua expressão denotava alegria, mas também angústia. Ela segura Raul colo e o leva para o quintal.
Quando chega ao quintal, Raul está mais velho. Finge que brinca no balanço para não chamar a atenção dos pais. Nesta época Raul já tem problemas, não se identifica mais com o estado de infância anterior. Está bravo. Não quer ir à escola. Não gosta dos supostos amigos. Não gosta da vida que escolheram pra ele. A única coisa que agrada Raul nesses momentos é olhar para cima e imaginar uma vida para além do céu. Uma vida de descobertas infindáveis. Gosta de imaginar-se num laboratório de uma grande empresa. Envolvido por tubos de ensaio, fumaças coloridas, telescópios de última geração e protótipos de naves espaciais, ele sonha que será um grande cientista.
Ela continua ali. Imóvel. A diferença é que agora o sangue envolve toda a sua cabeça. Raul sabe o que fazer. Sabe também o que não fazer, mas sente uma vontade incontrolável de fazê-lo. Então, se joga para ela. Vive o presente povoado pelo passado e por previsões irrealizáveis. Reconforta sua alma ao unir-se àquela alma.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Yo

Siento que soy.
Siento lo que fui y lo que hice de lo que fui.
Siento la color de todo que en mi quedó.
Siento los trozos de passado en flor.

Siento.
Clavo.
Me olvido.
Me cebo.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

O poder do mito

Dizem que o que todos procuramos é um sentido para a vida. Não penso que seja assim. Penso que o que estamos procurando é uma experiência de estar vivos, de modo que nossas experiências de vida, no plano puramente físico, tenham ressonância no interior do nosso ser e da nossa realidade mais íntimos, de modo que realmente sintamos o enlevo de estar vivos.

Joseph Campbell

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Um agosto aberto

Os acordes que de ti saíam, estremeciam em mim. A viga viva que na tua voz soava, compassava na minha mão. Colares de luz nos rodeavam, formando convenções de cigarras coloridas. Coloradas. Estufadas de calor e de sorrisos. Amaciadas por todas as pistas que se seguiram. Pelo nosso excesso de tato. Pela minha falta de medo. Pelos teus incontáveis segredos. Sondáveis. Solventes. Sou tua. Somente.

quinta-feira, 29 de julho de 2010

Uma visão conjunta




Um castelo. Parecia um castelo de palha envelhecida. De um dourado fosco vazio e cálido. De uma grossura incomparável. Amorfa.
De lá, saíam estranhas fumaças. Envoltas por uma luz muito escura, elas não se dissipavam facilmente. Pelo contrário, eram quase estáticas. Moviam-se apenas na lateral e sua velocidade lembrava o ritmo de uma vela queimando.
No céu, sóis e luas. Morcegos e gaviões. Rasantes e mordidas. Contestações no infinito.

Desenho de Pedro Porto

terça-feira, 20 de julho de 2010

Pedro

O quente do meu peito chama o quente do teu querer.
O quente do teu querer queima a chama do meu corar.
A chama do meu corar leva o tempo do nosso estar.
O nosso estar-junto prevalesce sobre o não-estar.
O não-estar emudece.
O porto se abre.
A rima desce.
O sentimento floresce.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

quinta-feira, 15 de julho de 2010

El tiempo


"(...) El tiempo no es un objecto, sino uma idea. Se extingue en la mente."

Fragmento do texto "Os Demônios", de Fiodor Dostoievski, extraído da obra acima, de autoria de Victor Grippo.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

O vôo mais alto

A partida era necessária, mas nem por isso menos penosa. Os rumores do desconhecido aprumavam-se gelatinosamente. O desejo de lá estar confundia-se com o receio de lá ficar. O receio de lá ficar mesclava-se ao anseio de cá viver. Viver para todos. Prover o máximo. Contestar o mínimo. Mastigar com gosto as sobras de tempo.
Vendável era pensar em desistir. Pensar em congelar. Convencer-se de que a-imensidão-do-que-precisa-para-sempre existe aqui e agora. Amarrar as mãos e os pés na cadeira da sala. Parar.
Mas havia ele. E com ele, havia tudo. Luz. Sentido. Prazer. Um simples olhar significava o momento. Uma breve conversa enchia a cabeça de ideias e o peito de alegria. Sim. Era ele. Era ele que provocava aquela pressa tranqüila. Aquele desejo suave e incontido. Aquela sensação de que havia tanto tempo e tão pouco tempo. Aquela coragem desmedida. Aquele preenchimento.
Apesar do amor, precisava voltar-se para si. Para ver ao longe. Planejar para planar. Planar para colher. Colher para voltar. Voltar para ele.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Um porto em mim

A encosta poética da tua língua conduz aos mais cobertos ensejos do meu porto. O portátil sentido do teu retrato refaz as linhas de prata e púrpura que carrego comigo. O esperado sonho da noite é o sonho do dia. É o prelo do asfalto. É a luz da tua boca na minha rima. É o dia do teu pouso em mim.

Às vezes, te tomo em graça. Outras, te pego por dentro. Outras ainda, vago a tua procura. E o encontro é sempre mais intenso do que a busca. E a busca nem sempre é leve. E o encontro nem sempre é todo. E o vazio pós-encontro é sempre duplo. E o querer-sempre-estar-e-nunca-mais-partir é sempre nosso.

domingo, 6 de junho de 2010

Não me dêem fórmulas certas, porque eu não espero acertar sempre.
Não me mostre o que esperam de mim, porque vou seguir meu coração!
Não me façam ser o que não sou, não me convidem a ser igual, porque sinceramente sou diferente!
Não sei amar pela metade, não sei viver de mentiras, não sei voar com os pés no chão.
Sou sempre eu mesma, mas com certeza não serei a mesma pra SEMPRE!
Gosto dos venenos mais lentos, das bebidas mais amargas, das drogas mais poderosas, das idéias mais insanas, dos pensamentos mais complexos, dos sentimentos mais fortes.
Tenho um apetite voraz e os delírios mais loucos.
Você pode até me empurrar de um penhasco q eu vou dizer:
- E daí? EU ADORO VOAR!

Clarice Lispctor

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Não quero ter a terrível limitação
de quem vive apenas
do que é passível de fazer sentido.
Eu não: quero uma verdade inventada.


Clarice Lispector

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Uma bolha em nós

No alto do teu projetar o corpo em minha direção, surgem calafrios atrelados a imensas bolhas do bem. Bolhas que nos conservam em identidades bem definidas. Bolhas suadas e vencidas. Bolhas de vento. Bolhas de cento. Bolhas.
O nosso passo, suave e corrente, remove os segredos incontáveis de um tempo em que vivíamos em outras bolhas. As dores são agora amaciadas em superfícies cuidadosamente escolhidas. Inexplicavelmente combinadas. Unidas em nós.
Na nossa bolha, o meu cantar segue o teu querer. O teu querer segue o nosso contar tudo o que somos e o que ainda queremos ser. O nosso querer ser serve o nosso ser-estar-no-mundo. E na consciência de ser-estar-no-mundo, nos encontramos e formamos a nossa bolha. Uma maciça e dourada bolha do bem.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Aspirantes do porvir

O corte lançado a poucos metros de altura remonta o presente. E povoa a frágil estrutura de um ser que se coloca no mundo. Que se coloca numa busca sem fim. Que se constrói por meio de verdades e falências. Que luta contra si mais do que contra todos. Que verte o que tem. O que pede. O que sente. O que poda.
Os percalços vêm em ondas invisíveis. Abstratas e internas, elas percorrem corredores sustenidos. Como penumbra viva em quarto fechado. Como salas de espera eternamente sem esperança. Como o vazio que externamos em suaves e correntes prestações. Como o pulsar negro do buraco que todos contêm.
No fundo, pontadas e ponteiros. Na superfície, impetuosas secreções revisitadas. No meio, uma vontade de cores. Uma certeza de formas bem preenchidas. Uma coragem corada e fincada. Nós. Emaranhados e vivos. Balanceados por fortes correntezas noturnas. Refletidos em todos os planos. Cobertos por todas as plumas. Contentes. Aspirantes do porvir.

domingo, 25 de abril de 2010

Dois em um

Na ponta dos pés, ela seguia sem canto. Na ponte do pé dela, ele quebrava o encanto. E transformava numa invasão colorida todo o excesso do dizer. Toda a carne que pesa. Toda a luz que fica. Toda ela. E todo ele.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

O nome mais bonito

A sombra da bota dele vinha a pé e de relance. O paralelo entre o pé e o peito não convidava a seguir adiante. Os dedos grossos e miúdos lhe pareciam condescendentes, ainda que tentassem exprimir o contrário. A boca escura e a expressão atonal pendiam para algo além do presente. Cortesia não declarada. Mistura lasciva e camuflada. Esmorecer da poesia. Olhar descalço. Me sacia.

domingo, 18 de abril de 2010

O que sai de nós

Do teu olhar parado, saiu um vulcão.
Do teu parar o olhar em mim, saiu uma dúvida.
Mas também uma atenuada vertigem.
Estranha pra mim.
Divertida pra ti.
Esturricada pelo momento.

Do teu pensamento sonoro, verteu uma luz.
Da minha escrachada viagem, correu um pouso sem fim.
Do teu pedido molhado, voou um cortejo.
Do invisível cortejo, caiu um botão.
Amarelo e vermelho.
Doce.

No achado imperdível gosto da tua vista, pesou o meu vão.
Na sagrada postura, escolha minha, senti a tua voz.
Dorei a nossa presença.
E servi o que sai de nós.

sábado, 10 de abril de 2010

Percurso mais-que-imperfeito

A chave para aquela porta estava perdida. Perdida entre colchas de retalhos corrosivas. Entre maços de cigarros semi-acesos. Entre escolhas e partidas. Entre nossa carne calada.
O marasmo branco e sem vida da tua pele ancora-se no mais falso prurido da minha. A pena que soltas encontra abrigo na viga que sobra da construção do meu peito. O poço da gente é o poço dos deuses. Um poço que emerge cada vez que eu te vejo.
Consigo chegar à porta, mas não consigo encontrar a chave. Nem ao menos sou capaz de procurá-la. Não lembro onde a deixei. Não lembro sequer de tê-la comigo, mas, ainda assim, sinto sua falta. Ela me preenchia. Ela me recompunha. Convidava-me a não mais esperar. A não mais consentir. Tomava-me a solidão.
Juntei todas as forças contidas e segui adiante. Sem chave, sem porta, sem medo. No caminho, fui percebendo que eu poderia ser alguém sem ela. Que talvez nem mais precisasse de sua presença. As agruras com as quais me deparei chegavam a ser belas de tão necessárias. As paradas feitas e as encostas vistas mostraram-se suportáveis. E quando, enfim, cheguei ao não-destino do percurso mais-que-imperfeito, descansei saciada numa concha vazia.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Quando tudo começou

Sobre a coxa da tua palma, verti o meu rio. Como quem cai de braços abertos no fundo de um oceano poroso. Macio e iluminado. Contente por receber mais um ser em busca de si mesmo.
As cores que me apresentaste eram as cores que a minha caminhada prometia. Condensadas em muitas faixas de tecidos rupestres. Em muita magia. Em muitas fagulhas apontadas para o centro. Energia que corre. Energia que lançamos.
A sensação de sempre ter estado ali era presente, assim como a expressão controlada do teu rosto. Vazia. Pintada. Desoladora pra mim. Mas não menos verdadeira pra nós. O meu fermento era um só. Os nossos conventos eram muitos. A tua pressa era partida. E a sombra dela era a premissa.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Paisagem Cinza

De onde estava, via apenas a ponta de um pinheiro. De um verde esvoaçante sem igual. Recheado de lembranças mortas-vivas. Cercado de desejos não realizados. E de amores infindados. De tédio.
O resto, resumia-se em prédios e sujeiras. Espalhados disformemente em estreitas colunas fechadas. Fechadas para o verde. Fechadas para a fluidez. Abertas para tudo que não importa. Tudo que descentra. Tudo aquilo que forma o nada.
Os lençóis da cama alinhavam-se ao violão jogado e aos medos contidos. Não mais contidos pela aflição, e sim pela falta de calor. Pela falta de sentido. O nosso sentido. Compacto e potente. Portátil e lascivo. Esvaziado por todas as falhas que se seguiram. Por todas as manhãs de guerra. Pela minha falta de tato. Pelo teu excesso de gozo. Pela nossa maldita insatisfação permanente.
A porta da sala dançava frenética. Como se quisesse sair dali. Acompanhada pelo vento que a conduzia. Casal perfeito. Porta e vento. Pouso e tempo. Tudo que não tivemos. E que buscávamos. E que escorria cada vez que eu tentava te dizer o quanto eu ainda queria. E tu, imóvel e distante, me dizias que não mais sentia. Que de nada valeria a minha fome. A minha pinta. Tudo era cinza. E o pinheiro verde, de um esvoaçante sem igual, era o que me restava. O meu reduto.

terça-feira, 30 de março de 2010

27

Os copos se encontraram antes dos corpos. O plástico encervejado dele tocou o plástico gintonicado dela. Os pés, nessa altura, já alvoroçados, dançavam um em direção ao outro. Pedintes. Correntes. A cabeça dela pendia para os lados e para baixo, em leves e corados movimentos. Os olhos dele fixavam nela. Como se nunca tivessem encontrado alguém tão simples. Tão simplesmente ela. A largura dos dois era uma só. O contato dos dedos, que se tocavam quase que por acaso, também. A palavra entalada era o arremesso dos lábios que serviam um ao outro. Sem que o toque escancarado fosse necessário. Sem que o desejo se confundisse com o porvir. Sem que a verdade deles fosse indelicadamente compreendida. Ficaram ali. Por algum tempo. Um tempo difícil de ser cortado. Um tempo do qual se lembrariam por muito tempo. Depois daquela noite, ela seguiu sendo ela. Com seus escritos, segredos e pesares. Ele seguiu sendo ele. Nos seus desajeitados cortejos, contentos e vazios. Nunca mais se viram. E nunca mais sentiram o gosto daquela noite.

sábado, 27 de março de 2010

Sólida Solidão

Um ponto no teu passo de pedra.
Uma pedra bem no meio da minha cara.
Um salto gelado no nada.
Pensamentos cinza.
Janela de cortes pouco profundos.
Cigarros de palha.
Medos de meia-cor.
Vaga sensação de vai-e-vem.
Danação.
Conchas sem som.
Sigo ainda.
Pego ainda.
Mais.
Mais de mim e do mundo.
Mar.
Montes de vida.
Garganta molhada.
E vazada.
Coração.
Cora a acidez do meu vão.
Cala os indesejáveis zunidos de nós.
Porão.
Ver-te onde queria estar.
Verte em solidão.

terça-feira, 23 de março de 2010

Vinte pratas

O ar da fumaça que me sobra é tudo que falta lá dentro.
Impressão de gesso mal-acabada.
Oásis de cordas tremidas.
Voluntariedade.
Pressa.
Precisão.
Contas.
Prestações intermináveis.
Frenesi de luvas ensaboadas.
De calor.
De varizes.
De sacolas que fogem das mãos.
De pessoas inesperadas e exasperadas.
Insípida.
Onda ventilada por tatuíras inflamadas.
Sou térreo.
Sou vinte.
Sou prata.

quarta-feira, 17 de março de 2010

Fusão

Torcida pelo redemoinho das pernas dele, ela via o fundo. Vermelho e branco. Novo. Corrente de mares imperfeitos. Vastos corredores de lírios. Lua escondida pelas frestas do presente. Amálgama.
Tenho-te aqui. Entre minhas coxas e meu perfume. Dentro da minha pele velada. Veludo és tu. Ventila meu ouvido. Contenta minha carne. Adentra meus sentidos. Instala-te na minha vida. Como quem vem e fica. Como quem vê e fala. Como tu. Como tudo.

Amor, subjetividade e movimento

(...)Embora nas relações amorosas, assim como nas relações sociais de uma maneira geral, vejam-se refletidos os ideais de uma sociedade capitalista, consumista e globalizada, essas mesmas relações não operam a partir de ações e reações estanques, carregadas de alto teor de objetividade e clareza. Os indivíduos são seres altamente subjetivos e bastante inconstantes no que diz respeito ao uso da sua racionalidade. Da mesma forma que somos (também) racionais em terrenos altamente emocionais, como o dos relacionamentos amorosos, somos emocionais em áreas da nossa vida que nos exigem atitudes mais racionais, como no campo profissional, por exemplo. Torna-se muito difícil separar esses dois impulsos, e esse é um dos aspectos que torna a vida em sociedade tão complexa e confusa, ainda que passível de compreensão.

Ademais, os sujeitos não são apenas produtos de uma sociedade globalizada, são também produtores dela. Assim como nós reproduzimos muitos dos padrões cultuados pela cultura global, somos também responsáveis pela existência de uma lógica reprodutora. Os sujeitos têm poder de agência sobre o mundo e é nessa relação sujeito agindo sobre o mundo/sujeito sendo moldado por este mesmo mundo que se formam as identidades sociais e individuais.

Admitir o poder da subjetividade, e pensar que as pessoas agem no mundo na mesma medida em que o mundo age sobre elas, significa pensar que existe um certo equilíbrio de forças guiando a vida em sociedade. É claro que esse equilíbrio é relativo e penderá mais para um lado do que para outro, dependendo da situação em que se encontrar o sujeito.

(trecho da etnografia "Quando amar é um problema: os significados de amar demais a partir do MADA - Mulheres que Amam Demais Anônimas")

sexta-feira, 12 de março de 2010

Reflexo


Estrela-alma da noite,

ainda impregnada de sono:

O dia de dentro chegava pulsante.

Caminho de rio que se quer estar longe.

Transbordo,

Gotículas-mãos dadas com o mundo:

Enxame.

Acordes espaçados ao vento verde.

Vocábulos esvoaçados pelo tempo, sede, vós:

Reflexo.

Nós.

(À quatro mãos, e muitas almas. Divagação conjunta, Juliana Ben e Eduardo Marques)

segunda-feira, 8 de março de 2010

Para Caio

(seria quase um plágio se não fosse uma homenagem)

Disponível. Palavra bonita. Peguei emprestada do melhor poeta pra te dizer que tudo que eu vou dizer agora é mais importante do que tudo que eu já disse um dia. Olha. Sente. Pega a minha mão. Percebe? O receio e o encantamento se misturam, assim como o marrom e o rosa da tua boca. E o áspero e o velho do teu casaco. E o falso sentido do teu perdão. E o meu falso pedido de perdão. E tudo aquilo que não foi visto. E que podia ser feito. Talvez não pudesse. Talvez não quisesse. É provável que não fosse, não vinha, não tinha.
Secreto. Como tudo que sai de ti. Como tudo que me comove. Abstrato. Teu desejo. Teu medo. Teu porvir. Borrado. Nós dois. Passado. Presente que se quer pesado. Pesado que não se quer nunca. Gosto de pedra quente em assoalho roxo. Vertigem de todas as coisas. Remédio para a pisada funda. Cor de sem. Projeto incansável. Amarelo que dói nos olhos. Um caule fincado em mim.

terça-feira, 2 de março de 2010

Cor-de-liz

O soco na pele lembra o invisível da alma. Leve e corante. O pensar e o torcer seguem caminhos distintos. O abismo que avisto é ilusório. Penugem. Corpo escasso. Peste que gruda.
A vida é engraçada, mas ainda assim machuca. Perda por todos os lados. Achados em todos os sentidos. Contentamento e displicência. Vazio e perturbação. Abandono.
O que salva nesse mar de lembranças cortadas é o profundo sentido da vida. Correto, ainda que distante. Pesado, ainda que corrente. Lesado, ainda que latente. Compacto.
Desejo estar em mim em todos os momentos, assim como protejo os favos de covardia que ainda restam . Quero-me inteira. Quero-me acesa. Quero-me cor-de-liz.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Parte III

Tempo de estar

Estar. Corada maneira de estar só. Pousada rasante do ser-no-mundo. Emoção enclausurada de formas distintas. Mania. Espera fatigante. Costas veladas.
Teu começo é o meu meio. Tua comida é o que me falta. Teu tecido me desce. Somos cascos de um jardim vazio. Temos verde. Vemos cura.
O gosto da testa arde no meu pé. O peso da carne convida e aquece. Passo. Apresso. Pego. Contesto. E o resto é tudo o que vem e não fica.

Parte II

Tempo de não-estar

O que sai de mim é o acúmulo incansável. Pudento e fétido. Vil e úmido. Disforme. O ímpeto de compactar o sentimento e ir além, cresce vertiginosamente. O medo de conseguir o que se quer pela cabeça, mas não se quer pelo coração, corrói.
Contatos abertos trazem o desgosto. Feridas guardadas competem com zelo. Veneno na cara. Couraça de prata. Azul de dentro.
Vejo que te quero por cento. Marco meu nome em tua casa. Peço o teu tempo. Perco o meu tempo. Tempero o nosso segredo.

Trilogia do Tempo - Parte I

Tempo de estar só

A verdade descia como um rio. Larga e galopante. O corpo estirado apresentava sinais de indiferença. O assoalho vermelho não mais conduzia. Pernas e braços compassavam vazios, enquanto o denso olhar dele vertia para ela. Vertia em suor. Em poder.
Artigos cotidianos, ele trazia. Respostas suaves, ela continha. Coragem na porta. Medo na esquina. Planos no fundo. O descontentamento deles era um só. O oco do peito, também. O sentido do que não há mais sentido era visceralmente sentido, e tudo que ali não estava, em algum outro lugar havia.
A mais tácita das perguntas tornava-se invasiva, criando um desconforto entre a bílis e a laringe. Ela queria pedir a ele para não pedir. Ele queria pedir a ela que pedisse. Um queria pedir ao outro o que não poderia dar a si mesmo, e os pedidos que coexistiam naquela sala borrada, permaneceriam ali, como o tempo queria.