terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Eles

O reverso de ti é o que mais me comove quando te tenho assim, tão vulnerável e secreta. O gosto do teu quase-abraço pinga insistentemente sobre a minha cabeça. Olho, boca e nariz desalinham-se, formando um ser quase irreconhecível, porém, ainda assim, reconhecível pelo pulsar. O teu pulsar. Ágil e ofensivo. Só. Na cabeceira da cama, livros e medos. No cabide, sacolas de desespero guardadas à vácuo. No parapeito amarelo, uma vontade. Quero te deter. Quero te salvar. Quero-te inteira. Ou será que apenas te quero? Tu, móvel e distante, penteia freneticamente os cabelos, como se quisesse adentrar à cabeça. Tua mão machucada segura o cabo machucado do pente e machuca tudo ao redor. Eu, mordo o polegar direito pensando que se o amor é isso, quero experimentar outras coisas.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Today is today

Possibilidades. Há sempre mais delas do que a gente imagina, já diria o ex-jogador de futebol, Eric Cantona, no filme “À procura de Eric”. Numa certa perspectiva, o conflito vem acompanhado das alternativas de solução para ele. O problema é um só, mas as soluções podem ser muitas. A pluralidade se faz presente e mostra como a incerteza, que está nas múltiplas possibilidades, torna a vida mais interessante e muito mais transcedental. Na música “Uma forma delicada de calor”, Lobão nos diz que a beleza de tudo é a certeza de nada, e que o talvez torna a vida um pouco mais atraente. Concordo com Lobão. O belo, o talvez e o acaso tem uma forte ligação, e sentir essa ligação provoca uma sensação de leveza e de liberdade incríveis.
Tem uma poesia do Mário Quintana que fala sobre a importância das perguntas, pois “as respostas são muitas, mas a tua pergunta é única e insubstituível”. A filosofia já falava sobre isso, ao questionar o mundo e assim descobrí-lo, como uma criança que acaba de nascer e não tem pressupostos, nem age de acordo com as convenções. Ela experimenta o mundo, e o faz de uma maneira muito particular.
Quero dizer com tudo isso, que os conflitos, as perguntas e os impasses são fundamentais e talvez mais importantes do que as soluções, pois eles falam algo profundo sobre nós, sobre a vida e sobre o que realmente faz a diferença. As respostas são apenas consequências de escolhas que surgem muito mais naturalmente quando a gente não pensa nelas. O futuro, o provável, o certo, só existem na nossa cabeça. Já o agora está presente o tempo inteiro, e por ser o único tempo que existe, é o único em que vale a pena viver.

Apenas Resto

O desgosto era o que havia restado. Na superfície, pedaços de pele e de unhas. No canto, bolas vermelhas irregulares. O olho dele, cabisbaixo. O ventre dela, delirante. Um fio de suor desligava os corpos. O movimento, contínuo e penoso, remetia ao vazio. Não àquele vazio oco, mas um vazio completo. Denso. Preciso. Fechado. O colar de sementes dela parecia querer pular do colo. O peito não era mais lugar. O chão de pedra parecia mais apropriado. Lugar estanque, onde nada brota. Onde nada desce. Dedos nervosos. Suados. Pedintes. A boca molhada dela. A indiferença que jorrava da boca suja dele. Uma energia marrom. Um instinto de não mais tentar. A certeza do engano.

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

A partida

O corte era pesado. Lento e imperfeito. O segredo estava nele e todo o resto também. Medo. Vertigem. Tédio. Decepção. Excesso de tempo. Havia muito tempo a perder e pouco espaço. Nada mais comovia. Nem o brilho nos olhos de alguém. Nem o desejo que invade a boca. Nem a mão que convida. Ninguém. Apenas ela. Apenas ela figurava. Como um poste desgovernado que criou vida e não sabe o que fazer com ela. Como um pássaro infeliz.
Um passo em direção ao chão. Marcas na rua e na cara. Perda e força por todos os lados. Uma vontade de ser. Simplesmente ser, sabe? Uma vontade de dançar para sempre. De olhos fechados. Nunca mais caminhar. Nunca mais olhar. Nunca mais pensar. Nunca mais ficar. Partir sempre. Na ponta dos pés.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Seleção

Um dia de espera
Contado e profícuo

Um segredo no peito
E uma pena cravada

O terço é lilás
Contínuo querer
Pleno de estar
E fácil de ver

Falta o abraço
O alívio no lombo
E o nome gravado

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Contusão

No joelho, o sabor de um pedaço de cadarço
Na grade vazia, pulam macacos de aço
E duras sacolas ensangüentadas

Através dos véus:
Absurdos
Portais
Relógios secos
E muitos
Muitos pastéis

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Hoje

Pena de pato
Preto e opaco
Peso no estopo
Abraço de esterco

Enterro quebrado
De pele e de vento
Prato encostado
No apelo do tempo

Penso
Contento
No fogo
De dentro

terça-feira, 30 de junho de 2009

A seiva e o broto

Um pedaço de abacate caiu no peito de um pé meu, esparramando um líquido branco e epumoso, que mais lembrava a cerração da manhã do que a polpa de uma fruta. Em busca do pé de abacate, olhei para cima, mas nada vi, além do céu laranja-anil. Quando me voltei para o chão, percebi a terra crescendo sobre mim. Cada membro do meu corpo era carinhosamente envolvido por ela. O branco do abacate grudava em minha pele, formando uma película fina entre o corpo e a terra. Já estava coberta na altura do pescoço, quando o laranja-anil do céu dera lugar ao azul acidentado por blocos de nuvens, e deles caíram densas gotas que alegraram os meus cabelos. Os fios, agora fortificados, armavam-se, como se quisessem alcançar as nuvens. Chuva cessada, nascer do verde. Folhas escuras brotavam, emaranhadas nos fios fortificados. Uma outra vida nascia.

segunda-feira, 6 de abril de 2009

A troca

Vinte anos depois, o mistério permanecia. Gláucio não conseguia entender. Por que alguém cometeria um ato de tamanha insanidade logo após realizar um feito memorável? O pai sempre fora um aficcionado por jogos. Particularmente por jogos de roleta. Nunca ganhara um centavo. Ao contrário, perdera quase tudo. Não fosse a mãe impedi-lo, ameaçando divorciar-se dele, teria vendido a casa e apostado o montante, de uma só vez, no número 11. Honório passara trinta anos apostando nesse número. Nas noites de sexta-feira, era um dos últimos a deixar o cassino. Não podia acreditar que mais uma vez a bolinha negara-se a pousar sobre o seu fiel número. Mas Honório não esmorecia. Seguia crédulo e paciente.
Na época, Gláucio tinha apenas 5 anos, mas lembrava-se com perfeição daquela noite. Em frente à penteadeira, o pai preparava-se para sair. Acertava o nó da gravata, ao mesmo tempo em que fazia um movimento com a cabeça em direção ao pescoço, que demonstrava confiança. Normalmente, quando percebia a presença de Gláucio, dizia “Venha ajudar o papai, Lalau”. Então ele corria em direção ao pai e fechava as abotoaduras de sua camisa. Este sorria, segurava o filho nos braços, olhava fundo nos seus olhos e lhe dava um úmido e demorado beijo na testa. Porém, naquela noite, não havia sido assim. Honório não percebera a presença do filho na porta do quarto. Estava profundamente compenetrado. Tinha os olhos fixos no espelho e havia algo em seu semblante que assustava Gláucio. O pai saiu sem se despedir. Da janela, Gláucio acompanhou os passos firmes do pai até sua figura sumir no horizonte.
Além do fato do pai ter se suicidado depois de ganhar 1 milhão na roleta, o que mais intrigava Gláucio era que o número vitorioso não tinha sido o 11, e sim o 27. Não fazia sentido. Honório era um homem supersticioso. Costumava dizer que se algum dia viesse a desistir do número 11, desistiria do jogo. Ele também tinha por hábito não comer carne e vestir apenas preto-e-branco nas sextas-feiras. Dizia que esses rituais conferiam-lhe leveza e sobriedade, requisitos indispensáveis ao bom jogador, segundo o próprio.
Gláucio sabia que a chave para compreender o suicídio do pai estava em descobrir por que ele resolvera apostar no número 27 e por que não notara sua presença na porta do quarto. Foi então que lembrou de um detalhe apontado por um amigo de Honório. Embora, naquela noite, o pai tenha saído sozinho de casa, chegara no cassino acompanhado de um sujeito desconhecido por todos os presentes. De acordo com esse amigo, o sujeito era alto, claro e vestia um traje pouco usual de cor ocre. Quando soube dessa informação, Gláucio não deu muita importância, mas agora tudo parecia mais claro. A presença do tal sujeito poderia ser a peça que estava faltando para desvendar o mistério.
Resolveu ir até o porão da velha casa em que morava em busca de uma pista. A maioria dos pertences do pai estavam lá, cuidadosamente guardados em caixas de papelão. A mãe colocara etiquetas nas laterais das caixas indicando seus respectivos conteúdos. Em uma delas havia a inscrição “Família”. Nela repousavam objetos e fotografias antigas. Um castiçal. Um véu negro. Cartas de amor escritas pelo seu bisavô. Férias em Parador. Seu aniversário de 4 anos. Seu aniversário de 5 anos. Opa. Gláucio não podia crer no que via. Separou todas as fotografias em que o pai aparecia naquele ano e confirmou a suspeita. Misteriosamente, o sujeito desconhecido estava em todas elas. Alto, claro e vestido de ocre. Não restavam mais dúvidas. O preto-e-branco dera lugar ao ocre.

sábado, 14 de fevereiro de 2009

fonte da vida

É nesses dias que mais gosto dele. Quando o tempo é curto e a vontade é muita. Quando o som provoca e a cor invade. Quando a luz é turva. É nesses dias contados que mais gosto de tê-lo. Sentir seu cheiro cálido e seu ar magistral, num dançar de sombras constantes, harmônicas, como se o ritmo dele ditasse o ritmo do universo. Perder-se nele. Embevecer-se. Como quem ama e chora. Como nós.
Depois, vem o toque. Frio, forte e despertante. Começa pelos pés e vai subindo até alcançar as coxas e a púbis. O deslizar do seu fruto condensa as sensações mais renovadoras, mais energizantes. Fundir-se a ele é como jogar pinball no espaço e depois descansar numa nuvem-nave lá para as bandas de saturno. Estar em sua companhia significa tudo.
Quando me desligo dele, continuo sentindo suas vibrações. Elas me acompanham por um tempo quase determinado. Com o passar dos meses, elas vão se dissipando e dando lugar às energias da cidade, mais pesadas e confusas. Mas quando chega setembro, já anseio por ele e começo a planejar um novo encontro. Gosto de imaginá-lo quente: vivo e possante. Gosto de pensar que ele me espera. Gosto do gosto dele em mim e de tudo que lembra a nossa presença. E quando, finalmente, nos reencontramos, gosto de gritar:
- Que saudades de ti, meu amor-mar!

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

O querer

O tempo todo ela só queria querer. E queria tudo. Um tudo de sentidos. Um tudo simbólico. Um todo denso. Queria o mar e o frescor do corpo e da alma; o vento, e todas as folhas e sacolas plásticas que ele balança; o fogo, e a queima de arquivos passados e dolorosos; o passo; o parto; o gosto de alguém. Ela queria sentir. Com a intensidade e a curiosidade das crianças e dos filósofos, que ao se depararem com o mundo, escolhem o mundo. Ela queria subir. Uma subida que valeria mais pela própria existência de ser enquanto subida, do que pelo alvo futuro. Ela queria cantar. E fazer de todas as palavras uma só, e de todos os tons, o seu. Ela queria criar, e queria que sua criação voasse e planasse onde quer que fosse. E queria ir além. Passar por todos os cantos e todos os templos. E ser tudo e nada ao mesmo tempo.

sábado, 3 de janeiro de 2009

Ano-Novo

Uma lágrima na tecla C e uma vontade de sombras. Imparcial dimensão de sombras. Lugar complacente de sentidos bem-assentados, onde a luz chega em etapas. Lentas e rajadas etapas. Potentes e cortadas etapas. Rijas. Ao longe ouve-se um canto soprado, que lembra clarinetes roucos combinados a contra-baixos solenes. O céu é violeta e a paisagem vermelho-escura. O pisar na terra conduz à mais profunda gravidade. No peito, o pesar de viver e de sonhar. O temer do não-alcançar e do não-desejar. O fardo do tempo.
Do outro lado, o verde. A luz de lá, está. O céu é branco e há muitos tipos de terras, de todas as cores e texturas. O cheiro da terra é vivo e molhado e o contato com ela desperta o instinto do ser. O gosto do vento pede um novo sopro, mais leve e corrente. Os sentidos trazem outras sombras, que interagem com o estado de simplesmente estar. Estado de uma vida descoberta por meio de tantas coisas... Tanto aperto... Tanto medo... E ao mesmo tempo tanta magnitude... O encontro consigo mesmo. Um “si” que só pode ser “si” por ser também “nós” e “tu”. E tudo.

[quilômetro quinhentos]

ondas-pulmões borrifam o escuro de brilho
farelo infinito que abduz os póros da cabeça
mergulhar lácteo numa memória fedorenta
de lebres sangrantes também meus joelhos

incerto lobo-mau na cozinha inundada
apanhando limas, leite-moça de areia
reta duradoura de agora hoje na noite
trabalho dos órgãos – música da pausa

cume
vila
falange

Poema de douglas dickel