sábado, 10 de abril de 2010

Percurso mais-que-imperfeito

A chave para aquela porta estava perdida. Perdida entre colchas de retalhos corrosivas. Entre maços de cigarros semi-acesos. Entre escolhas e partidas. Entre nossa carne calada.
O marasmo branco e sem vida da tua pele ancora-se no mais falso prurido da minha. A pena que soltas encontra abrigo na viga que sobra da construção do meu peito. O poço da gente é o poço dos deuses. Um poço que emerge cada vez que eu te vejo.
Consigo chegar à porta, mas não consigo encontrar a chave. Nem ao menos sou capaz de procurá-la. Não lembro onde a deixei. Não lembro sequer de tê-la comigo, mas, ainda assim, sinto sua falta. Ela me preenchia. Ela me recompunha. Convidava-me a não mais esperar. A não mais consentir. Tomava-me a solidão.
Juntei todas as forças contidas e segui adiante. Sem chave, sem porta, sem medo. No caminho, fui percebendo que eu poderia ser alguém sem ela. Que talvez nem mais precisasse de sua presença. As agruras com as quais me deparei chegavam a ser belas de tão necessárias. As paradas feitas e as encostas vistas mostraram-se suportáveis. E quando, enfim, cheguei ao não-destino do percurso mais-que-imperfeito, descansei saciada numa concha vazia.

Um comentário:

Eduardo Marques disse...

Parabéns, tua poesia está cada vez melhor :)

A sonoridade das palavras é latente, e o lirismo bastante profundo.

"A pena que soltas encontra abrigo na viga que sobra da construção do meu peito"

Ótimo verso, linda metáfora, cheia de sentidos esvoaçantes...