terça-feira, 27 de janeiro de 2009

O querer

O tempo todo ela só queria querer. E queria tudo. Um tudo de sentidos. Um tudo simbólico. Um todo denso. Queria o mar e o frescor do corpo e da alma; o vento, e todas as folhas e sacolas plásticas que ele balança; o fogo, e a queima de arquivos passados e dolorosos; o passo; o parto; o gosto de alguém. Ela queria sentir. Com a intensidade e a curiosidade das crianças e dos filósofos, que ao se depararem com o mundo, escolhem o mundo. Ela queria subir. Uma subida que valeria mais pela própria existência de ser enquanto subida, do que pelo alvo futuro. Ela queria cantar. E fazer de todas as palavras uma só, e de todos os tons, o seu. Ela queria criar, e queria que sua criação voasse e planasse onde quer que fosse. E queria ir além. Passar por todos os cantos e todos os templos. E ser tudo e nada ao mesmo tempo.

sábado, 3 de janeiro de 2009

Ano-Novo

Uma lágrima na tecla C e uma vontade de sombras. Imparcial dimensão de sombras. Lugar complacente de sentidos bem-assentados, onde a luz chega em etapas. Lentas e rajadas etapas. Potentes e cortadas etapas. Rijas. Ao longe ouve-se um canto soprado, que lembra clarinetes roucos combinados a contra-baixos solenes. O céu é violeta e a paisagem vermelho-escura. O pisar na terra conduz à mais profunda gravidade. No peito, o pesar de viver e de sonhar. O temer do não-alcançar e do não-desejar. O fardo do tempo.
Do outro lado, o verde. A luz de lá, está. O céu é branco e há muitos tipos de terras, de todas as cores e texturas. O cheiro da terra é vivo e molhado e o contato com ela desperta o instinto do ser. O gosto do vento pede um novo sopro, mais leve e corrente. Os sentidos trazem outras sombras, que interagem com o estado de simplesmente estar. Estado de uma vida descoberta por meio de tantas coisas... Tanto aperto... Tanto medo... E ao mesmo tempo tanta magnitude... O encontro consigo mesmo. Um “si” que só pode ser “si” por ser também “nós” e “tu”. E tudo.

[quilômetro quinhentos]

ondas-pulmões borrifam o escuro de brilho
farelo infinito que abduz os póros da cabeça
mergulhar lácteo numa memória fedorenta
de lebres sangrantes também meus joelhos

incerto lobo-mau na cozinha inundada
apanhando limas, leite-moça de areia
reta duradoura de agora hoje na noite
trabalho dos órgãos – música da pausa

cume
vila
falange

Poema de douglas dickel