O canto mais escuro da casa é o canto do meu contato.
O meu contato com o disforme, com o comprimido.
Eu-corpo de imagem vivida.
Eu-corpo animal-fantasmagórico.
A passagem é lenta, mas o passo é firme.
E os outros cantos surgem no auge da experiência.
Formando ondas rochosas de um vermelho opaco que não quer se dissipar.
Como eu gosto de vermelho.
O cheiro do contato lembra a terra da praça em que eu bricava na infância.
Era gostoso sentir a terra grundando nos meus pequenos dedinhos e depois roçando na dobradura interna do joelho.
Mas logo depois vinha o medo, e junto com ele a contenção.
O vermelho ia embora e ficava o preto.
Eu não gostava de preto.
Mas ele gostava.
sábado, 18 de outubro de 2008
terça-feira, 23 de setembro de 2008
7 meses
O braço dele foi a primeira coisa que eu vi. Suas mãos tentavam amaciar o preto, mas este, como de costume, estava indomável. Depois eu vi a cor. O vermelho do peito dele chamava o petit-poà do meu vestido, também vermelho. O sorriso direto foi a terceira surpresa da noite, e o tocar de mãos conduziu ao inevitável encontro dos corpos, nessa altura, já ofegantes, soltando pequenas faíscas no ar. Nesta ocasião-casual-comum surgiu um inesperado sentimento profundo, algo entre o desejo intenso do querer físico e o desejo duradouro do querer-sempre-estar. Nada mais precisava ser dito. O amor estava ali.
segunda-feira, 15 de setembro de 2008
Meia-cor
Uma violeta brotou no telhado do meu edifício
O abismo lancinante, que já esperava o ocorrido, engoliu o edifício
Os carros vermelhos buzinaram durante dez horas
E as fendas invisíveis dançaram no meu quadril
Nessa hora, o compasso do meu corpo pediu pra ficar
Mas o espaço negro do meu rabo-de-cavalo não deixou.
O abismo lancinante, que já esperava o ocorrido, engoliu o edifício
Os carros vermelhos buzinaram durante dez horas
E as fendas invisíveis dançaram no meu quadril
Nessa hora, o compasso do meu corpo pediu pra ficar
Mas o espaço negro do meu rabo-de-cavalo não deixou.
quinta-feira, 11 de setembro de 2008
As cores do fim
Um peito moído. Um peito moído de carne e sangue. Um peito tomado pelo aperto profundo. Uma dor pulsante em forma de cone. Um olhar perdido de fundo de poço.
O tênis roxo, ao pé da cama, traz o pé que faltava pra pular da cama e sair do quarto. A pasta de dente ameniza o gosto das secreções da noite. O pó compacto uniformiza a pele e deforma a cor.
Um telefonema interrompe o café da manhã e desculpa a alma. O desejo de abrir a janela e ser engolida pelo mundo torna-se latente e, então, ela se joga pra ele, quase feliz, aliviada. O barulho do corpo moído, no choque com o chão, lembra o som de um abacate gigante caindo de maduro. O sangue, antes aprisionado no peito, é liberado pela cabeça e vai ganhando uma coloração rosada ao se misturar com a chuva. O líquido rosa vai tomando a calçada até se perder em algum bueiro dessa cidade cinza.
O tênis roxo, ao pé da cama, traz o pé que faltava pra pular da cama e sair do quarto. A pasta de dente ameniza o gosto das secreções da noite. O pó compacto uniformiza a pele e deforma a cor.
Um telefonema interrompe o café da manhã e desculpa a alma. O desejo de abrir a janela e ser engolida pelo mundo torna-se latente e, então, ela se joga pra ele, quase feliz, aliviada. O barulho do corpo moído, no choque com o chão, lembra o som de um abacate gigante caindo de maduro. O sangue, antes aprisionado no peito, é liberado pela cabeça e vai ganhando uma coloração rosada ao se misturar com a chuva. O líquido rosa vai tomando a calçada até se perder em algum bueiro dessa cidade cinza.
terça-feira, 2 de setembro de 2008
Romance reproduzível
Eu odeio como, hoje em dia, dá pra levar qualquer coisa com você, como se diz em inglês – take away. Benjamin errou. Não é a reprodução, é a portabilidade que mata – tudo é fácil demais.
Texto de Daniel Horch e RaquelGarbelotti, extraído do livro-exposição-portátil Amor love.
segunda-feira, 25 de agosto de 2008
Fogo na grade
Os dedos dele seguravam-na pelo sexo, formando uma concha pélvica que ia da bunda até o umbigo. O desejo dela escorria pelas pernas e encontrava o calcanhar dele, pelo roçar do salto na pele áspera. O contato do corpo com a grade a excitava, provocando a liberação de curtos, mas intensos gritinhos. Ele bufava e exprimia uma feição peculiar, como se algo o confortasse e o incomodasse ao mesmo tempo. O odor dos corpos poderia ser sentido por qualquer transeunte. O ar estava tão infestado, que o gosto deles poderia ser tragado pelo cigarro do executivo que caminhava na calçada. As sete horas se aproximavam e o movimento da rua ia aumentando, mas o casal parecia pouco se importar com isso, afinal, um pedaço branco de pescoço vale mais do que mil olhares reprovadores.
segunda-feira, 4 de agosto de 2008
Viagem ao centro do cérebro
Um caco de vidro rasgou o meu dedo, e o sangue que escorreu dele formou um tapete vermelho com bolas roxas disformes e cheias de vida. Elas me tiraram pra dançar e foram me conduzindo até o vazio do meu próprio pensamento. Chegando lá, sentei numa poltrona amarela entre o córtex e o mesencéfalo. As bolas roxas disseram para eu aguardar um instante, pois logo o Sr Cerebelo, responsável por manter a postura e o equilíbrio, viria falar comigo. Enquanto esperava, me distraía com os impulsos nervosos que insistiam em cortar a minha frente. Pensei em seguida que o Sr Cerebelo deveria ser um homem muito ocupado, pois a minha espera já durava uma hora, e o ambiente estava ficando cada vez mais fervente e sufocante. Esse clima atraiu um pensamento mal-intencionado, que se sentou na poltrona preta ao meu lado e começou a dizer impropérios. Mas curiosamente, pela primeira vez, eu não acreditei nele. Pela primeira vez enfrentei-o com a serenidade de quem está dentro e fora de si ao mesmo tempo. Consegui ver a inveja e a desarmonia nos seus olhos e naquele momento percebi o que eu estava fazendo ali. O Sr Cerebelo não viria, pois ele estava realmente muito ocupado me ensinando a lidar com os meus pensamentos.
segunda-feira, 28 de julho de 2008
Para uma antropologia da antropologia
Encorajada pela crítica de Douglas Dickel, meu namorado e grande incentivador literário, ao texto “Amor e subjetividade nas relações amorosas”, resolvi expor algumas reflexões sobre o olhar antropológico no século no XXI e sobre a dificuldade que esta jovem ciência – a antropologia – encontra em trabalhar com a interdisciplinaridade. Essa dificuldade, vista pela academia como virtude, no sentido de não se deixar levar por categorias e estereótipos criados por outras áreas do conhecimento, é interpretada por muitos como arrogância e prepotência. Sendo assim, me proponho a colocar a antropologia como objeto de estudo antropológico e apontar caminhos para que ela seja considerada uma ciência tão importante como o são a biologia e a psicologia.
A antropologia é uma área do conhecimento muito recente se comparada com a história, com a filosofia ou com a biologia. Dentro das próprias ciências sociais ela é a caçula, sendo ainda menos reconhecida que suas irmãs, chamadas sociologia e ciência política. O primeiro grande antropólogo reconhecido mundialmente foi Lévi-Strauss e seu primeiro livro, As estruturas elementares do parentesco, data da década de 30 do século passado. Logo, a antropologia propriamente dita não tem 80 anos de existência.
Essa jovem ciência, como a maioria dos jovens, precisa de auto-afirmação para se desenvolver, precisa de ousadia e determinação para conseguir o seu lugar ao sol. Assim como o movimento feminista precisou de radicalismos para conseguir o direito à igualdade entre homens e mulheres, a antropologia precisa de um pouco de presunção para se afirmar como ciência fundamental na dissolução dos grandes problemas sociais da atualidade. Quase sempre precisamos almejar muito para conseguir um pouco, precisamos ir além para chegar onde de fato gostaríamos de estar.
No entanto, isso não quer dizer que a antropologia não possa dialogar com outras áreas e ganhar muito com isso. Penso que a antropologia, embora seja uma ciência independente, deve muito à sociologia (sua mãe) e à filosofia (sua avó) e tem muito a crescer no encontro com a educação, com a psicologia e até mesmo com a biologia. No mundo capitalista e globalizado em que vivemos torna-se cada vez mais necessária a interdisciplinaridade, na medida em que uma única área do conhecimento não consegue dar conta da realidade mais micro, pois os contatos e as relações são tão velozes, instantâneos e efêmeros que só a partir da união de muitos olhares podem ser interpretados.
A perspectiva interdisciplinar enriquece e engrandece os mais variados estudos, mas também pode facilmente cair na superficialidade e no senso comum. Para que isso não aconteça, a vigilância epistemológica deve ser constante, ou seja, no caso da antropologia, ao dissertar sobre um dado objeto de pesquisa devemos partir do olhar antropológico, permitindo-nos sim ser tangenciados por outros olhares que venham a contribuir com o debate proposto, mas sempre atentando para o objetivo central do nosso trabalho. Essa consideração é fundamental, pois se a pesquisa não tiver foco, ou mostrar muitos pontos de vista sem aprofundá-los não contribuirá para a transformação de nenhuma realidade.
A antropologia é uma área do conhecimento muito recente se comparada com a história, com a filosofia ou com a biologia. Dentro das próprias ciências sociais ela é a caçula, sendo ainda menos reconhecida que suas irmãs, chamadas sociologia e ciência política. O primeiro grande antropólogo reconhecido mundialmente foi Lévi-Strauss e seu primeiro livro, As estruturas elementares do parentesco, data da década de 30 do século passado. Logo, a antropologia propriamente dita não tem 80 anos de existência.
Essa jovem ciência, como a maioria dos jovens, precisa de auto-afirmação para se desenvolver, precisa de ousadia e determinação para conseguir o seu lugar ao sol. Assim como o movimento feminista precisou de radicalismos para conseguir o direito à igualdade entre homens e mulheres, a antropologia precisa de um pouco de presunção para se afirmar como ciência fundamental na dissolução dos grandes problemas sociais da atualidade. Quase sempre precisamos almejar muito para conseguir um pouco, precisamos ir além para chegar onde de fato gostaríamos de estar.
No entanto, isso não quer dizer que a antropologia não possa dialogar com outras áreas e ganhar muito com isso. Penso que a antropologia, embora seja uma ciência independente, deve muito à sociologia (sua mãe) e à filosofia (sua avó) e tem muito a crescer no encontro com a educação, com a psicologia e até mesmo com a biologia. No mundo capitalista e globalizado em que vivemos torna-se cada vez mais necessária a interdisciplinaridade, na medida em que uma única área do conhecimento não consegue dar conta da realidade mais micro, pois os contatos e as relações são tão velozes, instantâneos e efêmeros que só a partir da união de muitos olhares podem ser interpretados.
A perspectiva interdisciplinar enriquece e engrandece os mais variados estudos, mas também pode facilmente cair na superficialidade e no senso comum. Para que isso não aconteça, a vigilância epistemológica deve ser constante, ou seja, no caso da antropologia, ao dissertar sobre um dado objeto de pesquisa devemos partir do olhar antropológico, permitindo-nos sim ser tangenciados por outros olhares que venham a contribuir com o debate proposto, mas sempre atentando para o objetivo central do nosso trabalho. Essa consideração é fundamental, pois se a pesquisa não tiver foco, ou mostrar muitos pontos de vista sem aprofundá-los não contribuirá para a transformação de nenhuma realidade.
Por fim, defendo que a antropologia surge com o objetivo de compreender o homem em sociedade, o homem como um ser cultural, racional, emocional e social. Para isso, nós antropólogos, nos aprofundamos nas diferenças – muitas vezes produtoras de desigualdades – entre os indivíduos numa mesma cultura e em culturas distintas, com o intuito de apreender a extraordinária diversidade cultural do nosso planeta e tentar transformar alguns padrões através do pensamento crítico.
quarta-feira, 23 de julho de 2008
O amor e a subjetividade nas relações amorosas
Em uma entrevista concedida à televisão recentemente, o escritor José Saramago declarou não se sentir obrigado a amar. Respeitar sim, mas amar não. O amor não é um dever e sim um querer. Saramago substituiria o mandamento devemos amar o próximo como a nós mesmos por devemos respeitar o próximo como a nós mesmos.
A moral cristã é repleta de ensinamentos divinos que nos impõem muitos deveres e poucos direitos, chegando ao ponto de nos coagir a amar o próximo. Mas por que devo eu amar alguém? Como posso amar um sujeito que não me desperta amor? De que forma monitorar um sentimento tão sublime e transcendental como o amor? E mesmo se eu pudesse controlá-lo, permaneceria ele íntegro em suas propriedades emocionais? Continuaria sendo ele o amor?
As leis de direitos humanos, responsáveis pelo bem-estar social, seguem a mesma linha da moral cristã. O bom cidadão é aquele que cumpre os seus deveres e exerce os seus direitos, direitos que também se configuram enquanto deveres, na medida em que é meu dever reclamar para o PROCON quando julgo que um determinado produto não atende as expectativas criadas pelo rótulo ou pela propaganda. Da mesma forma como é meu dever denunciar um furto ou qualquer outro crime cometido contra mim ou contra outra pessoa.
Não amar o próximo não é um crime, mas de acordo com a lógica vigente – ancorada em princípios religiosos e políticos – é no mínimo uma ofensa. E se nos coagem a amar, torna-se legítimo tentar compreender o que é o amor.
Um romântico diria que é o maior e mais completo de todos os sentimentos. Aquele que move e comove todos os seres humanos. O eterno responsável pelas grandes alegrias e tristezas dessa vida. Enfim, o sentido de toda a vida.
Um biólogo daria explicações físicas do que ocorre com o nosso corpo e com a nossa mente quando amamos – visto que a medicina ocidental ainda trabalha com as oposições binárias corpo x mente e natural x social. O biólogo faria esquemas e diagramas explicando o amor e o diferenciando de outros sentimentos, como o desejo e a paixão.
Um psicólogo não seria tão idealista quanto o romântico, nem tão preciso quanto o biólogo, ao criar teorias psicanalíticas sobre o amor, baseadas em investigações genealógicas que provavelmente desembocariam em conclusões freudianas.
E o que diria um antropólogo sobre o amor? Certo está que não cabe ao antropólogo encontrar respostas para os dilemas da humanidade. Muito menos a partir de teorias explicativistas baseadas em pressupostos funcionalistas. À antropologia caberia melhor analisar as relações sociais de amor jogando luz sobre a realidade, seguindo a perspectiva hermenêutica – interpretativista – de Clifford Geertz. Esse autor percebeu que podemos interpretar o social tentando compreender sem explicar. Jogar luz sobre a realidade é desvelar algo que já está ali. Não se trata de desmascarar a aparência para chegar a uma suposta essência, mas sim de desacortinar, descobrir a partir da investigação. Essa é a tarefa primordial da antropologia. Mostrar o que está ali, mas que a maioria das pessoas não vê, ou por ignorância (na melhor acepção da palavra) ou por descaso, ou por descrédito, ou por preguiça. E como o objeto de estudo do antropólogo é o indivíduo em sociedade, com toda a sua subjetividade, emocional e racional, parece fazer sentido que o amor seja um tema passível de pesquisa nas ciências sociais.
Voltando à obrigatoriedade de amar de que nos fala Saramago, torna-se fundamental dizer aqui o principal motivo que me leva a pensar na impossibilidade de amar a todos: amar é uma tarefa muito difícil, que envolve escolhas, privações, sacrifícios, paciência, compreensão, dedicação, maturidade e um pouco de sorte. Além de tudo isso, existe uma atmosfera misteriosa que paira sobre o amor. Há algo de mágico nesse sentimento. Ou melhor, algo mágico parece acontecer na vida das pessoas acometidas pelo amor. E isso continua inexplicável, embora seja passível de compreensão.
terça-feira, 22 de julho de 2008
Amantes da Realeza
- Corre guria, corre senão eu te mato!
A chuva que desabara há apenas alguns instantes dificultava a fuga de Letícia. Nunca o elogio pernas de estopim, certa vez feito por um admirador secreto, caíra tão bem para ela. Correr. Mais e mais rápido. Não adentrava outro pensamento naquela jovem e já tão desajustada cabecinha, pois o velho do dente de ouro aproximava-se paulatinamente.
As ruas do centro da cidade estavam assustadoramente vazias. O volátil cheiro da chuva amenizava o fétido odor daquela paisagem urbana. O único sinal de humanidade fixava-se nos letreiros luminosos que atraíam criaturas enfadonhas em busca de prazeres sexuais fáceis. O desespero e a degradação pairavam no ar.
A chuva que desabara há apenas alguns instantes dificultava a fuga de Letícia. Nunca o elogio pernas de estopim, certa vez feito por um admirador secreto, caíra tão bem para ela. Correr. Mais e mais rápido. Não adentrava outro pensamento naquela jovem e já tão desajustada cabecinha, pois o velho do dente de ouro aproximava-se paulatinamente.
As ruas do centro da cidade estavam assustadoramente vazias. O volátil cheiro da chuva amenizava o fétido odor daquela paisagem urbana. O único sinal de humanidade fixava-se nos letreiros luminosos que atraíam criaturas enfadonhas em busca de prazeres sexuais fáceis. O desespero e a degradação pairavam no ar.
Exausta, Letícia quebrou à esquerda na Consolação. Suas pernas amoleciam a cada passada e o fôlego há muitas quadras se perdera. Olhou para trás e não viu o velho. Cogitou a possibilidade dele ter desistido da busca, afinal, não era a primeira vez que a ameaçava de morte. Sentou no meio-fio, um pouco desconfiada, e tirou do bolso a bucha roubada. Em rápidos e rotineiros movimentos cheirou toda a cocaína do plástico e foi enquanto o lambia, quase saciada, que sentiu uma respiração na sua nuca. Naquela fração de segundos passaram muitas imagens pela cabeça de Letícia. O velho lhe cortando a garganta com um canivete vagabundo, a cara nojenta de um tarado querendo a possuir ali mesmo, a expressão habitual, mas nem por isso menos desoladora, de algum viciado à procura do vale encantado.
- O teu tênis tá desamarrado.
- Ah?
- O cadarço do teu tênis tá desamarrado. Acho melhor amarrar, senão tu pode cair.
- Tá. Valeu.
Letícia respirou aliviada. Tratava-se apenas do moleque maluco da avenida Realeza preocupado com o cadarço alheio. Amarrou o tênis e fez menção de levantar-se.
- Pode ficar aí, ele já foi.
- Ele quem?
- Ora quem, o velho de quem tu tava fugindo!
- Como é que tu sabe?
- Ele se cansou de correr e entrou no puteiro da outra esquina. Agora ele deve tá enchendo o cu de cachaça ou comendo alguma puta. Pode ficar tranqüila.
- Como é que tu sabe que eu tava fugindo de alguém? Tu tá me seguindo?
- Eu sei de muita coisa, guria.
E sabia mesmo. Naquela mesma noite, um pouco antes da fuga e da chuva, o moleque vadiava pela avenida Realeza. Os edifícios comerciais, em grande número por ali, encerravam seus expedientes e deles brotavam estampadas faces aliviadas e cansadas de sextas-feiras comuns. Automóveis populares infestavam o asfalto e eis que surge a imagem dela. Os cabelos vermelhos contrastavam com a pele branca e oleosa. As olheiras profundas lutavam contra a beleza dos olhos azuis acinzentados. A camiseta rasgada combinava perfeitamente com a saia jeans e com o coturno preto. Ali, exatamente ás 18:37 de uma sexta-feira comum, ele a amou profundamente.
Ela esperava, visivelmente nervosa, o filho-da-puta que lhe devia vinte mangos. A grana seria suficiente para comprar uma bucha. Caminhava de um lado para o outro roendo as unhas com fervor. A avenida estava cada vez mais movimentada. Os transeuntes se chocavam em sopapos despropositados, o que a deixava ainda mais embravecida.
- Acho que ele não vem.
- O que?
- Quem tu tá esperando não vem.
- Tu é amigo do Caveira?
- Não, nem conheço ele, mas acho que ele não vem.
- Vai te fuder!
- Uma gata como tu não devia ficar falando palavrão.
- Eu falo como eu quiser, e tu não tem nada com isso.
- Tenho sim.
- Ah é? Por quê?
- Porque eu te amo.
Letícia ficou imóvel por alguns segundos. Nunca alguém havia dito que a amara, muito menos um desconhecido. E nunca ela sentira aquele misto de pavor e felicidade transbordante. O breve instante dos olhos nos olhos foi suficiente para enlaçar os dois corações. Mas como Letícia era uma teimosa garota viciada de apenas 15 anos, respondeu com ar superior:
- Já que tu me ama, me empresta 20 pila então. Tô precisando.
- Não tenho gata, mas te deixo o meu coração.
- Dele eu não preciso.
Dito isso ela sumiu na multidão e deixou ele ali, apaixonado e convencido do novo amor que surgira. Ele já sabia o suficiente, e hoje ela saberia também.
- O teu tênis tá desamarrado.
- Ah?
- O cadarço do teu tênis tá desamarrado. Acho melhor amarrar, senão tu pode cair.
- Tá. Valeu.
Letícia respirou aliviada. Tratava-se apenas do moleque maluco da avenida Realeza preocupado com o cadarço alheio. Amarrou o tênis e fez menção de levantar-se.
- Pode ficar aí, ele já foi.
- Ele quem?
- Ora quem, o velho de quem tu tava fugindo!
- Como é que tu sabe?
- Ele se cansou de correr e entrou no puteiro da outra esquina. Agora ele deve tá enchendo o cu de cachaça ou comendo alguma puta. Pode ficar tranqüila.
- Como é que tu sabe que eu tava fugindo de alguém? Tu tá me seguindo?
- Eu sei de muita coisa, guria.
E sabia mesmo. Naquela mesma noite, um pouco antes da fuga e da chuva, o moleque vadiava pela avenida Realeza. Os edifícios comerciais, em grande número por ali, encerravam seus expedientes e deles brotavam estampadas faces aliviadas e cansadas de sextas-feiras comuns. Automóveis populares infestavam o asfalto e eis que surge a imagem dela. Os cabelos vermelhos contrastavam com a pele branca e oleosa. As olheiras profundas lutavam contra a beleza dos olhos azuis acinzentados. A camiseta rasgada combinava perfeitamente com a saia jeans e com o coturno preto. Ali, exatamente ás 18:37 de uma sexta-feira comum, ele a amou profundamente.
Ela esperava, visivelmente nervosa, o filho-da-puta que lhe devia vinte mangos. A grana seria suficiente para comprar uma bucha. Caminhava de um lado para o outro roendo as unhas com fervor. A avenida estava cada vez mais movimentada. Os transeuntes se chocavam em sopapos despropositados, o que a deixava ainda mais embravecida.
- Acho que ele não vem.
- O que?
- Quem tu tá esperando não vem.
- Tu é amigo do Caveira?
- Não, nem conheço ele, mas acho que ele não vem.
- Vai te fuder!
- Uma gata como tu não devia ficar falando palavrão.
- Eu falo como eu quiser, e tu não tem nada com isso.
- Tenho sim.
- Ah é? Por quê?
- Porque eu te amo.
Letícia ficou imóvel por alguns segundos. Nunca alguém havia dito que a amara, muito menos um desconhecido. E nunca ela sentira aquele misto de pavor e felicidade transbordante. O breve instante dos olhos nos olhos foi suficiente para enlaçar os dois corações. Mas como Letícia era uma teimosa garota viciada de apenas 15 anos, respondeu com ar superior:
- Já que tu me ama, me empresta 20 pila então. Tô precisando.
- Não tenho gata, mas te deixo o meu coração.
- Dele eu não preciso.
Dito isso ela sumiu na multidão e deixou ele ali, apaixonado e convencido do novo amor que surgira. Ele já sabia o suficiente, e hoje ela saberia também.
segunda-feira, 21 de julho de 2008
A primeira sensata deprê
A palavra proibida não lhe saía do pensamento e estaria prestes a lhe sair pela boca, se não fosse a ação das poderosas armas da civilidade. O desejo de gritar a palavra proibida, e com isso expelir todo aquele sentimento em um único jorro, era latente. Mas o bom senso cala até as mentes mais criativas. As convenções da civilidade diariamente castram e deformam artistas pouco seguros e pessoas altamente sensíveis. O elemento responsável pela “harmonia” da vida em sociedade é o mesmo que, nessas horas difíceis, segura o choro e prende toda a emoção ao coração, amassando essa densa bola de sangue e criando uma nova bola entre o esôfago e a garganta.
O medo de nunca mais conseguir sorrir pregava uma estaca no canto da boca e os olhos pesavam em longos movimentos para o chão, lugar onde se pisa, lugar escuro e linear, lugar onde ninguém quer estar. Até o subsolo é melhor que o térreo, é melhor que o chão. Há algo de misterioso e atraente no underground, virou até marca de um estilo alternativo! Mas o chão não é atraente. Ele é sujo e seco e feio. Lembra o fim. Lembra o irreversível.
Sua positividade se esvaía, como se esvai a alegria de quem sabe que todo o tempo bom da sua vida já passou. As fantasias, que outrora a entusiasmavam, nem ao menos a confortavam. Pensou que poderia viver de lembranças, de boas lembranças, mas quando se está no chão elas somem, e o passado vira um emaranhado de vivências menos ruins do que as atuais. O passado é ruim, o presente é insuportável e o futuro não existe. Podemos definir esse estado como uma grande e pentelha deprê!
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