domingo, 25 de abril de 2010

Dois em um

Na ponta dos pés, ela seguia sem canto. Na ponte do pé dela, ele quebrava o encanto. E transformava numa invasão colorida todo o excesso do dizer. Toda a carne que pesa. Toda a luz que fica. Toda ela. E todo ele.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

O nome mais bonito

A sombra da bota dele vinha a pé e de relance. O paralelo entre o pé e o peito não convidava a seguir adiante. Os dedos grossos e miúdos lhe pareciam condescendentes, ainda que tentassem exprimir o contrário. A boca escura e a expressão atonal pendiam para algo além do presente. Cortesia não declarada. Mistura lasciva e camuflada. Esmorecer da poesia. Olhar descalço. Me sacia.

domingo, 18 de abril de 2010

O que sai de nós

Do teu olhar parado, saiu um vulcão.
Do teu parar o olhar em mim, saiu uma dúvida.
Mas também uma atenuada vertigem.
Estranha pra mim.
Divertida pra ti.
Esturricada pelo momento.

Do teu pensamento sonoro, verteu uma luz.
Da minha escrachada viagem, correu um pouso sem fim.
Do teu pedido molhado, voou um cortejo.
Do invisível cortejo, caiu um botão.
Amarelo e vermelho.
Doce.

No achado imperdível gosto da tua vista, pesou o meu vão.
Na sagrada postura, escolha minha, senti a tua voz.
Dorei a nossa presença.
E servi o que sai de nós.

sábado, 10 de abril de 2010

Percurso mais-que-imperfeito

A chave para aquela porta estava perdida. Perdida entre colchas de retalhos corrosivas. Entre maços de cigarros semi-acesos. Entre escolhas e partidas. Entre nossa carne calada.
O marasmo branco e sem vida da tua pele ancora-se no mais falso prurido da minha. A pena que soltas encontra abrigo na viga que sobra da construção do meu peito. O poço da gente é o poço dos deuses. Um poço que emerge cada vez que eu te vejo.
Consigo chegar à porta, mas não consigo encontrar a chave. Nem ao menos sou capaz de procurá-la. Não lembro onde a deixei. Não lembro sequer de tê-la comigo, mas, ainda assim, sinto sua falta. Ela me preenchia. Ela me recompunha. Convidava-me a não mais esperar. A não mais consentir. Tomava-me a solidão.
Juntei todas as forças contidas e segui adiante. Sem chave, sem porta, sem medo. No caminho, fui percebendo que eu poderia ser alguém sem ela. Que talvez nem mais precisasse de sua presença. As agruras com as quais me deparei chegavam a ser belas de tão necessárias. As paradas feitas e as encostas vistas mostraram-se suportáveis. E quando, enfim, cheguei ao não-destino do percurso mais-que-imperfeito, descansei saciada numa concha vazia.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Quando tudo começou

Sobre a coxa da tua palma, verti o meu rio. Como quem cai de braços abertos no fundo de um oceano poroso. Macio e iluminado. Contente por receber mais um ser em busca de si mesmo.
As cores que me apresentaste eram as cores que a minha caminhada prometia. Condensadas em muitas faixas de tecidos rupestres. Em muita magia. Em muitas fagulhas apontadas para o centro. Energia que corre. Energia que lançamos.
A sensação de sempre ter estado ali era presente, assim como a expressão controlada do teu rosto. Vazia. Pintada. Desoladora pra mim. Mas não menos verdadeira pra nós. O meu fermento era um só. Os nossos conventos eram muitos. A tua pressa era partida. E a sombra dela era a premissa.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Paisagem Cinza

De onde estava, via apenas a ponta de um pinheiro. De um verde esvoaçante sem igual. Recheado de lembranças mortas-vivas. Cercado de desejos não realizados. E de amores infindados. De tédio.
O resto, resumia-se em prédios e sujeiras. Espalhados disformemente em estreitas colunas fechadas. Fechadas para o verde. Fechadas para a fluidez. Abertas para tudo que não importa. Tudo que descentra. Tudo aquilo que forma o nada.
Os lençóis da cama alinhavam-se ao violão jogado e aos medos contidos. Não mais contidos pela aflição, e sim pela falta de calor. Pela falta de sentido. O nosso sentido. Compacto e potente. Portátil e lascivo. Esvaziado por todas as falhas que se seguiram. Por todas as manhãs de guerra. Pela minha falta de tato. Pelo teu excesso de gozo. Pela nossa maldita insatisfação permanente.
A porta da sala dançava frenética. Como se quisesse sair dali. Acompanhada pelo vento que a conduzia. Casal perfeito. Porta e vento. Pouso e tempo. Tudo que não tivemos. E que buscávamos. E que escorria cada vez que eu tentava te dizer o quanto eu ainda queria. E tu, imóvel e distante, me dizias que não mais sentia. Que de nada valeria a minha fome. A minha pinta. Tudo era cinza. E o pinheiro verde, de um esvoaçante sem igual, era o que me restava. O meu reduto.